quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Dificil de entender

RP, 73 anos, negro, casado. Aposentado ha 5 anos e antes disso foi motorista.
Queixa principal: "agua no pulmao"
Historia da Doenca atual: Paciente relata dor em faixa no abdome superior associada a dispneia aos medios esforcos de inicio ha anos. Houve piora do quadro ha 5 meses, no entanto, paciente so foi trazido ao servico pela familia ha 6 dias. Desde entao esta internado.
Historia Patologica Pregressa: nega doencas da infancia e neoplasias. Indicacao de cirurgia para retirada de pedras na vesicula.
(diagnosticado em agosto desse ano).
Historia Patologia Familiar: nega qualquer tipo de doenca.
Historia Fisiologica e Social: relata boa alimentacao. Foi fumante por anos e parou ha 12. Nao pratica atividade fisica. Relata ausencia de problemas p/ defecacao e de urina. Nunca foi vacinado.

Ao chegar naquele quarto de hospital, procurei entre os varios leitos o numero XXX. Encontrei um senhor sentado na cama enquanto inalava aerossol. Do outro lado, estava a acompanhante, filha dele.
Me apresentei e tentei colher os dados basicos da identificacao do paciente, porem nao consegui entender as respostas do Sr. R devido a inalacao. Aproveitei a presenca da filha que respondeu essa primeira etapa.
Ao chegar na Queixa Principal, esperei ele terminar o aerossol porque desde esse momento era importante ouvir diretamente dele.
"O que aconteceu p/ que o Sr. esteja aqui?"
Ele deu logo o diagnostico "agua no pulmao" o que na verdade e um derrame pleural.
Sr. R relatou os sintomas apontando os locais que incomodavam mais e de vez enquando levantava e sentava novamente. Ele nao estava agitado, mas parecia sentir uma especie de alivio ao ficar em pe. Apesar das minhas tentativas frustradas de chamar a atencao dele p/ mim, Sr. R respondia as perguntas apatico e tinha um olhar vazio e depressivo. Ele nao fitava o olhar em nada e nao olhou diretamente p/ mim em nenhum momento. Por isso, a filha ajudou com algumas informacoes e contou que o pai teve que ser trazido a forca para o hospital. "Eu so vim, porque elas me obrigaram" disse ele se referindo as filhas e a mulher. Ele nunca havia tomado injecao ate sexta quando foi internado. Odeia hospital e tem medo.
Ao perguntar sobre cancer ele elevou as maos p/ o ceu em sinal de agradecimento e disse: "Gracas a Deus, nao! Nunca."
Na verdade, ele negava qualquer problema de saude e a filha sempre reafirmava as palavras do pai, assegurando da perfeita saude dele ate o surgimento do derrame. Sr. R estava usando um dreno no torax.
Relatou se sentir aliviado em relacao a sua doenca, porque afinal de contas e uma coisa muito simples. Ele falou que isso aconteceu porque ele fumou durante muito tempo. "Tudo que Deus manda eu recebo, igual essa doenca" Ele prefere nao reclamar da saude p/ seus familiares e tenta esconder os sintomas que tem sentido nos ultimos anos. Tambem disse que espera ficar curado logo e pareceu acreditar mesmo nisso.

Olhando o prontuario medico, descobri que Sr. R tem cancer de prostata com metastase no pulmao e ossos. E muito curioso pensar o que levou ele e a filha a contarem uma historia tao diferente p/ mim. Interessante tbm ele ter descoberto as pedras na vesicula em agosto desse ano e nao ter visto as metastases no exame. Sera que ele fez isso propositalmente ou nao esta aceitando o fato de ser um paciente terminal? Eu nao sei... Mas creio que ele saiba sim, porque ha 2 anos atras fez radioterapia.

Nesse dia, eu e meus colegas ficamos impressionados com tantos pacientes oncologicos que nao sabem que tem cancer, porque a familia preferiu nao contar; e outros que estao cientes da doenca e preferem nem tocar no assunto, e uma especie de tabu. Muitos referem ao cancer como "a doenca", "aquela doenca", porque o simples fato de falar o nome dela provoca desconforto. Isso acontece mais frequentemente em familias onde ja existiram muitos casos.